O aval é autônomo e abstrato, mas acessório à obrigação garantida. Na falência, a extinção da dívida implica a extinção do aval, como garantia.
1. A autonomia, abstração e acessoriedade do aval
A seguinte afirmação é muito comum: o aval não se extingue nas hipóteses de falência e recuperação judicial do devedor da obrigação garantia porque o ato cambiário é autônomo e abstrato. Porém, do ponto de vista conceitual, autonomia e abstração são propriedades que não guardam relação com o tema da extinção do aval no ambiente da insolvência, em particular na falência.
Rubens Requião, sob inspiração de Vivante, entende autonomia dos títulos de crédito como o fato de seu possuidor de boa-fé exercitar um direito próprio, que não pode ser restringido ou destruído em virtude das relações existentes entre os anteriores possuidores e devedores.1 Tullio Ascarelli complementa dizendo que a declaração cartular é distinta do negócio fundamental, constituindo fonte de um direito autônomo.2 Waldirio Bulgarelli oferece o contorno prático da autonomia: impossibilidade de exceções pessoais do possuidor anterior do título serem opostas ao possuidor atual.3
O art. 899, §2°, do CC é didático sobre a autonomia quando trata do aval: “Subsiste a responsabilidade do avalista, ainda que nula a obrigação daquele a quem se equipara, a menos que a nulidade decorra de vício de forma”.
Já sobre a abstração do aval, veja-se Pontes de Miranda:
(…) o aval é abstrato, formal, autônomo, comercial. A causa – que não pode ser dele, porque, sendo abstrato o aval, como é, de qualquer causa se abstraiu – é de alguma relação jurídica extranegocial, ou de negócio jurídico subjacente, simultâneo ou sobrejacente, não importa (…)4
Abstração, portanto, significa que não se perquire da causa do ato cambiário, ou seja, da atribuição patrimonial que o justifica. Então como esses dois conceitos – autonomia e abstração – dialogam com a acessoriedade do aval?
A maneira mais simples de compreender é trabalhar com as visões de Antonio Junqueira de Azevedo de “causa pressuposta” e “kausa”. O aval tem por causa pressuposta uma dívida preexistente, porque a garante, mas não a tem por “kausa”, ou seja, por razão de atribuição patrimonial.
Pode-se entender o conceito de “causa pressuposta” por meio de exemplos:
São exemplos de negócio com causa pressuposta: todos os contratos reais, como o mútuo, o depósito, o comodato, que pressupõem logicamente a entrega da coisa; a confissão de dívida, a novação, a delegação e a dação em pagamento, que supõem dívidas já existentes; a fiança, que supõe o débito do afiançado; a transação, que supõe lide ajuizada ou por ajuizar; o reconhecimento de filho, que supõe filiação de sangue etc.5
Assim é também o aval, que supõe a existência de uma obrigação cambiária anterior, a qual é sua “causa pressuposta”.
A “kausa”, por sua vez, é a “causa de atribuição patrimonial”: causa credendi, causa solvendi e causa donandi.6 A primeira é ilustrada por uma compra e venda simples: A compromete-se a transferir um bem a B porque este compromete-se a pagar o valor ajustado. A segunda revela-se na dação em pagamento: A obriga-se a transferir um bem a B porque lhe deve certo valor em razão de negócio jurídico anterior. A terceira é típica da doação: A, donatário, se torna credor de B porque este, por liberalidade, quis celebrar um contrato de doção. “Kausa”, portanto, é a razão da atribuição patrimonial nas obrigações.
No negócio jurídico abstrato não se discute a “kausa”. É o caso do aval, sobre o qual não se debate o porquê da obrigação assumida pelo avalista.
Em resumo, aval é autônomo, mas não totalmente independente da obrigação garantida, que lhe é a causa pressuposta, e abstrato, por não se analisar a sua “kausa”. Esses conceitos não colidem com a acessoriedade da garantia: além de autônomo e abstrato, o aval também é acessório em relação à obrigação avalizada. Como explica Newton de Lucca:
Pouco adianta hoje, igualmente, insistir-se na “objetivação” do aval, se não se esclarece o sentido preciso dessa expressão, que é o de desvincular o ato do aval da firma garantida, mas não a ponto de prescindir da existência dela, vale dizer, objetiva-se o aval como garantia substancialmente autônoma, mas, apesar dessa objetivação, continuaria ela formalmente acessória.7
Sendo assim, resta a pergunta: extintas as obrigações do falido, persiste o aval?
2. O art. 158 da lei 11.101/05 e o aval
Diz a norma:
Art. 158. Extingue as obrigações do falido: I – o pagamento de todos os créditos; II – o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; III – o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado; IV – o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta Lei.
Primeiro ponto a destacar é a diferença entre extinção das dívidas do falido e extinção da falência. Pelo próprio inciso III, observa-se que pode haver casos em que as dívidas se extinguem, mas a falência prossegue com os bens arrecadados para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado. Logo, uma coisa são as dívidas, outra é o processo falimentar.
Há um curioso precedente do STJ, decidido sobre o decreto-lei 7.661/1945, mas que cobre o teor do inciso III citado supra:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. FALÊNCIA DA DEVEDORA PRINCIPAL. EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO PELO DECURSO DO PRAZO DE CINCO ANOS. ART. 135, III, DA ANTIGA LEI DE QUEBRAS. EXTENSÃO DO BENEFÍCIO AO AVALISTA E DEVEDOR SOLIDÁRIO. DESCABIMENTO. EXCEÇÃO QUE APROVEITA APENAS AO FALIDO. APELO NÃO PROVIDO.
1. A extinção das obrigações do falido em decorrência da aplicação do art. 135, III, do Decreto-Lei nº 7.661/1945 (antiga Lei de Quebras), não extingue nem impede o prosseguimento de execução ajuizada contra avalista e devedor solidário.
2. Recurso especial não provido.
“Logo, tratando-se de causa extintiva de obrigação que diz respeito apenas à pessoa do falido, porquanto se trata de condição necessária à sua reabilitação para exercer a atividade empresarial, constitui-se em exceção pessoal, não podendo ser estendida em benefício dos demais coobrigados, conforme parte final do art. 281 do CC/2002 antes transcrita, contrariando o pleito do ora recorrente”.
(REsp n. 1.104.632/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/4/2017, DJe de 1/6/2017.)
O julgado entende que o decurso do prazo configura uma exceção pessoal, por dizer respeito à “pessoa do falido”. Mas, como ensina Pontes de Miranda, exceção pessoal não diz respeito à pessoa, mas sim à relação jurídica subjacente (ou “kausa”) ao ato cambiário:
Exceções pessoais são aquelas decorrentes das relações jurídicas subjacentes ao título de crédito e que apenas são eficazes contra pessoas determinadas que participaram ou tinham conhecimento dessas relações, não alcançando terceiros que receberam o título por endosso legítimo.8
De fato, precisamente em função da abstração do aval, não se deve perquirir de sua “kausa” e das exceções a ela relacionadas. Porém, como explicitado acima, a dívida do falido não é “kausa” do aval, mas sim sua “causa pressuposta”.
E o que acontece quando a “causa pressuposta” se perde depois da pactuação da garantia, como nas hipóteses de extinção da dívida do falido? A garantia extingue-se. Isso vale para penhor9, para hipoteca10, para o seguro11 e para alienação fiduciária.12 Cada figura tem diferenças específicas entre si. Contudo, estão em gênero próximo: sua natureza jurídica é de garantia e, portanto, têm sempre como “causa pressuposta” uma dívida. Extinta esta, todas se extinguem, tal qual ocorre com o aval.
3. Conclusão
Extintas as obrigações do falido nos termos do art. 158 da lei 11.101/05, extingue-se o aval. Essa conclusão não fere nem a autonomia – inoponibilidade de exceções pessoais – nem a abstração – desconexão com a “kausa” – do ato cambiário. Trata-se de decorrência natural da acessoriedade de qualquer garantia, que tem como “causa pressuposta” a existência de uma dívida.
Não se confunda a extinção do aval na falência com o Tema repetitivo 885 do STJ, que envolve recuperação judicial e novação.13 Conforme o art. 364 do CC,14 novada a obrigação, extinguem-se suas garantias, se não houver disposição em contrário. O próprio art. 59 da lei 11.101/0515 é disposição em contrário. Portanto, é possível admitir que o avalista da recuperanda segue como garantidor mesmo após a aprovação do plano de recuperação judicial.
Na falência, porém, a extinção da obrigação avalizada ocorre ope legis, sem qualquer ressalva quanto às garantias e sem surgimento de uma nova obrigação que possa carregá-las, como acontece na novação.
Por fim, sobre o questionamento de que, então, o aval de nada serviria porque, extinta a dívida do falido, o credor restaria sem a garantia, valem duas ponderações.
A primeira é que o credor pode perseguir o avalista e obter dele a satisfação de seu crédito enquanto não se materializarem as hipóteses do art. 158 da lei 11.101/05. Então, sim, o aval tem valor, mesmo na falência.
A segunda ponderação diz respeito a um ajuste de expectativa: o aval, como qualquer garantia, serve para melhorar a posição do credor em caso de inadimplemento da obrigação garantida, mas não parece haver no ordenamento jurídico razão para entender que, ante o evento máximo da insolvência, que é a falência, a situação creditória permanecerá incólume, salvo melhor juízo.
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1 Cf. Curso de Direito Comercial, v.1, 24ª. ed, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 321 e seguintes.
2 Cf. Teoria geral dos títulos de crédito, 2ª. ed, São Paulo: Saraiva, 1969, p. 51 e seguintes.
3 Cf. Títulos de Crédito, 15ª. ed, São Paulo: Atlas, 1999, p. 58.
4 Tratado de direito privado, Tomo XXXV, 3ª ed, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 374 e 376.
5 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia. São Paulo, Saraiva, 2002, p. 148.
6 Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação de declaração negocial. 1986. Tese de Professor Titular – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986. Acesso em: 26 mar. 2025.p. 124.
7 O Aval – Parte II. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 1986, p. 199.
8 Tratado de direito cambiário, Volume I, 1ª. ed. Campinas: Booskseller, 2000, p. 384.
9 Artigo 1.436 do Código Civil. Extingue-se o penhor: I – extinguindo-se a obrigação.
10 Artigo 1.499 do Código Civil. A hipoteca extingue-se: I – pela extinção da obrigação principal;
11 Artigo 12 da Lei nº 15.040, de 9 de dezembro de 2024: Desaparecido o risco, resolve-se o contrato com a redução do prêmio pelo valor equivalente ao risco a decorrer, ressalvado, na mesma proporção, o direito da seguradora às despesas incorridas com a contratação.
12 Artigo 26-A da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997: § 4º Se no segundo leilão não houver lance que atenda ao referencial mínimo para arrematação estabelecido no § 3º deste artigo, a dívida será considerada extinta, com recíproca quitação, hipótese em que o credor ficará investido da livre disponibilidade.
13 “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005”.
14 Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário. Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o penhor, a hipoteca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação.
15 Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50 desta Lei.